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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Alguém pode ser completamente feliz nesta vida?



Parece que é possível ter a bem-aventurança nesta vida:
1. Com efeito, diz o Salmo 110: “Felizes os imaculados no caminho, que andam na lei do Senhor”. Ora, isso acontece nesta vida. Logo, alguém pode ser nesta vida bem-aventurado.
2. Além disso, a imperfeita participação no sumo bem não afasta a razão de bem-aventurança, pois, caso contrário, um não seria mais bem-aventurado do que o outro. Ora, os homens nesta vida podem participar do sumo bem, conhecendo e amando Deus, embora imperfeitamente. Logo, o homem nesta vida pode ser bem-aventurado.
3. Ademais, o que por muitos é dito, não pode ser totalmente falso. Parece, pois, que é natural o que está em muitos, poi a natureza não falha totalmente. Ora, muitos afirmam a bem-aventurança nesta vida, como se lê no Salmo 143: “Feliz o povo em que se encontram essas coisas”, isto é, os bens da vida presente. Logo, alguém nesta vida pode ser bem-aventurado.
Em sentido contrário, lê-se no Livro de Jó: “O homem nascido de mulher vive por pouco tempo, e está cheio de tantas misérias” (14, 1). Mas, a bem-aventurança exclui a miséria. Logo, o homem nesta vida não pode ser bem-aventurado.
RESPONDO. Alguma participação na bem-aventurança é possível nesta vida, mas a perfeita e verdadeira bem-aventurança é impossível tê-la nesta vida. De dois modos isso pode ser considerado.
Primeiro, pela mesma razão comum de bem-aventurança. A bem-aventurança sendo o bem perfeito e suficiente, exclui todo o mal e satisfaz todo desejo. No entanto, esta vida está submetida a muitos males, que não podem ser evitados, como a ignorância por parte do intelecto, as desordenadas afeições por parte do apetite, muitos tormentos por parte do corpo, como Agostinho enumera diligentemente. Igualmente nesta vida o desejo do bem não pode ser saciado. Com efeito, naturalmente deseja o homem que permaneçam os bens que possui. Não obstante, os bens desta vida são transitórios, como ela mesma é passageira, embora naturalmente a desejemos e queiramos nela permanecer para sempre, até porque, por sua natureza, o homem foge da morte. Portanto, é impossível ter nesta vida a bem-aventurança perfeita.
Segundo, considerando-se aquilo em que a bem-aventurança especialmente consiste, ou seja, a visão da essência divina, que não pode o homem atingir nesta vida. Do exposto fica patente que alguém não pode nesta vida conseguir a verdadeira e perfeita bem-aventurança.
Quanto aos argumentos iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Alguns são ditos bem-aventurados nesta vida, ou por causa da esperança de alcançar a bem-aventurança na vida futura, segundo se lê na Carta aos Romanos: “Somos salvos pela esperança” (8, 24); ou por cauã de alguma participação na bem-aventurança por um certo gozo do sumo bem.
2. A participação da bem-aventurança pode ser imperfeita de dois modos. Primeiro, quanto ao objeto da bem-aventurança, o qual certamente não se vê em sua essência. Essa imperfeição anula a razão de verdadeira bem-aventurança. Segundo, quanto ao sujeito da participação, que atinge certamente o objeto da bem-aventurança em si mesmo, que é Deus, mas, imperfeitamente, em comparação com o modo como Deus frui de si mesmo. Esta imperfeição não anula a verdadeira razão de bem-aventurança, porque como a bem-aventurança é uma ação, como já foi dito, a verdadeira razão de bem-aventurança deriva do objeto, que especifica o ato, não do sujeito.
3. Os homens julgam que nesta vida há alguma bem-aventurança, devido a uma certa semelhança com a verdadeira bem-aventurança. Assim sendo, não falham totalmente no que pensam.
Fonte: ST, I-II, 5, 3


terça-feira, 2 de outubro de 2012

O anjo pode iluminar o homem?


Parece que o anjo não pode iluminar o homem:
1. Com efeito, o homem é iluminado pela fé, tanto que Dionísio atribui a iluminação ao batismo, o sacramento da fé. Ora, a fé vem diretamente de Deus, como se diz na Carta aos Efésios: “É pela graça que vós sois salvos por meio da fé; e isso não depende de vós, é dom de Deus” (2, 8). Logo, o homem não é iluminado pelo anjo, mas imediatamente por Deus.
2. Além disso, a passagem da Carta aos Romanos que diz: “Deus lhes manifestou” (1, 19), a Glosa diz: “Não somente a razão natural foi útil manifestando aos homens as coisas divinas, mas ainda o próprio Deus lhes revelou por meio de sua obra”, ou seja, por meio das criaturas. Ora, tanto a razão natural como as criaturas, vêm imediatamente de Deus. Logo, Deus ilumina o homem de modo imediato.
3. Ademais, o que é iluminado conhece sua iluminação. Ora, os homens não percebem que são iluminados pelos anjos. Logo, não o são.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, Dionísio prova que as revelações das coisas divinas chegam aos homens mediante os anjos. Essas revelações são iluminações. Portanto, os homens são iluminados pelos anjos.
RESPONDO. Pela ordem da divina providência os inferiores se submetem às ações dos superiores. Assim como os anjos inferiores são iluminados pelos superiores, assim os homens, inferiores aos anjos, são por eles iluminados.
Contudo, o modo de uma e outra iluminação às vezes é semelhante e às vezes diferente. Acima se disse [em outro artigo] que a iluminação que é a manifestação da verdade divina pode ser considerada segundo dois aspectos: enquanto o intelecto inferior é reforçado pela ação do intelecto superior, e enquanto o superior propõe ao inferior as espécies inteligíveis que possui, a fim de que ele possa captá-las. Assim se passa com os anjos, quando um anjo superior partilha uma verdade universal concebida segundo a capacidade de um anjo inferior. Todavia, o intelecto humano não pode receber uma verdade inteligível pura, posto que sua natureza exige que conheça voltando-se para as representações imaginárias [tema interessantíssimo que espero também postar aqui]. Por isso os anjos comunicam aos homens a verdade inteligível por intermédio das imagens sensíveis. Como diz Dionísio: “É impossível que brilhe para nós um raio divino a não ser envolto por diversos véus sagrados”. Por outro lado, o intelecto humano, enquanto inferior, é fortalecido pela ação do intelecto angélico. Portanto, por essas duas maneiras se considera a iluminação pela qual o homem é iluminado pelo anjo.
Quanto às objeções iniciais, deve-se dizer, portanto, que:
1. São dois os requisitos para a fé. Primeiro, um habitus [ver Vocabulário dos termos utilizados por Sto. Tomás na Suma Teológica] do intelecto pelo qual se dispõe a obedecer à vontade que se inclina para a verdade divina. Com efeito, o intelecto dá seu assentimento à verdade da fé não por ser convencido pela razão, mas por ser obrigado pela vontade. Como diz Agostinho: “Ninguém crê a não ser porque quer”. Com respeito a isso, a fé vem exclusivamente de Deus. Segundo, que as verdades a serem cridas sejam propostas ao crente. E isso se faz pelo homem, pois “a fé vem pelo ouvido”, como diz a Carta aos Romanos (10, 17), mas principalmente pelos anjos, por meio de quem são reveladas aos homens as coisas de Deus. Portanto, os anjos realizam algo na iluminação da fé. Ademais, os homens são iluminados pelos anjos não somente a respeito do que crer, mas também do que agir.
2. A razão natural, que vem imediatamente de Deus, pode ser fortalecida pelo anjo, como foi dito. E igualmente, a verdade inteligível que resulta das espécies recebidas das criaturas é tanto mais elevada quanto mais forte for o intelecto humano. Desse modo o homem é ajudado pelo anjo para alcançar um conhecimento mais perfeito de Deus por meio das criaturas.
3. A operação intelectual e a iluminação podem ser consideradas de duas maneiras. Primeiro, da parte da coisa conhecida. Sob esse aspecto, aquele que conhece ou é iluminado, conhece que conhece ou que é iluminado, porque conhece que a coisa lhe é manifestada. Segundo, da parte do princípio: neste caso, nem todo o que conhece alguma verdade conhece o que é o intelecto, princípio da atividade intelectual. De modo semelhante, nem todo o que é iluminado por um anjo conhece que é iluminado pelo anjo (Nota: Explicação que não vale apenas para o papel dos anjos na Revelação, mas para todas as “iluminações” que podem deles provir, sem que o saibamos de modo algum).
Fonte: ST I, 111, 1


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A Mãe de Deus foi virgem ao conceber Cristo?


Parece que a Mãe de Deus ao conceber Cristo:
1. Com efeito, nenhum filho que tem pai e mãe é concebido de mãe virgem. Ora, de Cristo se diz não só que teve mãe, mas também pai: “Seu pai e sua mãe estavam admirados do que se dizia do menino”, está no Evangelho de Lucas (2, 33). E mais adiante: “Eis que teu pai e eu te buscávamos angustiados” (v. 48). Logo, Cristo não foi concebido de mãe virgem.
2. Além disso, o início do evangelho de Mateus prova que Cristo foi filho de Abraão e de David porque José era descendente de David. Tal prova ficaria sem valor se José não fosse pai de Cristo. Parece, pois, que a mãe de Cristo o concebeu pela união com José. Não parece, portanto, que tenha sido virgem ao conceber.
3. Ademais, a Carta aos Gálatas diz: “Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher” (4, 4). Ora, na linguagem corrente, o termo mulher designa aquela que tem relações com um homem. Logo, Cristo não foi concebido de mãe virgem.
4. Ademais, os que são da mesma espécie são gerados da mesma forma, porque a geração, como qualquer outro movimento, recebe a sua especificação pelo término. Ora, Cristo foi da mesma espécie que os outros homens, como diz a Carta aos Filipenses: “Tornou-se semelhante aos homens e foi reconhecido como homem pelo seu comportamento” (2, 7). Logo, dado que os outros homens são gerados pela união do homem e da mulher, parece que também Cristo teve de ser gerado de modo semelhante. E, portanto, não foi concebido de mãe virgem.
5. Ademais, qualquer forma natural tem uma matéria determinada para ela, fora da qual não pode existir. Ora, a matéria da forma humana parece ser a semente do homem e da mulher. Logo, se o corpo de Cristo não tivesse sido concebido da semente do homem e da mulher, não teria sido um verdadeiro corpo humano, o que não é conveniente. Parece, pois, que não foi concebido por mãe virgem.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, está o que diz Isaías: “Eis que a Virgem conceberá” (7, 14).
RESPONDO. É absolutamente necessário confessar que a mãe de Cristo concebeu virgem. O contrário é a heresia dos ebionitas e de Cerinto, que julgavam Cristo um homem ordinário e pensavam ter ele nascido da união dos sexos. Quatro são as razões que mostram a conveniência da concepção virginal de Cristo.
Primeiro, para salvaguardar a dignidade do Pai que o envia. Pois dado que Cristo é verdadeiro Filho de Deus por natureza, não convinha que tivesse outro Pai fora de Deus, para não transferir a outrem a dignidade de Deus.
Segundo, isso convinha ao que é próprio do Filho enviado. Pois ele é o Verbo de Deus. Ora, o Verbo é concebido sem nenhuma corrupção do coração; mais ainda, a corrupção do coração é incompatível com a concepção de um verbo perfeito. Dado, pois, que a carne foi assumida pelo Verbo de Deus para ser carne do Verbo de Deus, convinha também que ela mesma fosse concebida sem a corrupção da mãe.
Terceiro, isso convinha à dignidade da humanidade de Cristo, na qual não podia haver lugar para o pecado, pois por ela seria tirado o pecado do mundo, como diz o Evangelho de João: “Eis o Cordeiro de Deus”, ou seja, o inocente, “que tira o pecado do mundo” (1, 29). Mas, numa natureza já corrompida pela união do homem e da mulher, a carne não poderia nascer sem a contaminação do pecado original*. Por isso afirma Agostinho: “Só não houve aí, a saber, no matrimônio de Maria e José, a relação conjugal, porque não poderia dar-se tal relação na carne de pecado sem a concupiscência da carne, que provém do pecado, e sem a qual quis ser concebido aquele que não deveria ter pecado”.
* O ato conjugal não é “corrompido”, e apesar de certas concessões a uma linguagem agostiniana, Sto. Tomás não pensa nem ensina que a transmissão do pecado original proviria do que a sexualidade teria de desordenado, mas só do fato de que ela transmite a natureza “corrompida” (o que significa: privada da graça original). Ele não diz tampouco que, se Jesus tivesse nascido de uma união conjugal teria necessariamente contraído o pecado original, coisa que a união hipostática torna impensável. Independente da maneira como Cristo foi concebido, a “carne” que ele faz sua está toda ela e desde sua origem mais profunda submetida ao espírito, a Deus.
Quarto, pela finalidade mesma da encarnação de Cristo, que se destinava a fazer renascer os homens como filhos de Deus, “não pela vontade da carne, nem pela vontade do varão, mas de Deus” (Jo 1, 13), isto é, pelo poder de Deus. O modelo deste renascimento tinha de manifestar-se na própria concepção de Cristo. Por isso escreve Agostinho: “Era necessário que a nossa cabeça nascesse, segundo a carne, de uma virgem, por um milagre extraordinário, para significar que seus membros deveriam nascer, segundo o espírito, da virgem que é a Igreja”.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Segundo Beda: “José era chamado pai do Salvador, não porque o fosse verdadeiramente, como afirmam os focinianos, mas foi como tal considerado pelos homens para salvaguardar a reputação de Maria”. É por isso que diz o Evangelho de Lucas: “E, segundo se pensava, filho de José” (3, 23).
Ou, como diz Agostinho, José é chamado pai de Cristo da mesma maneira que “é tido por esposo de Maria, sem comércio carnal, mas pelo vínculo do matrimônio; e assim esteve unido muito mais estreitamente a Cristo do que se o tivesse adotado de outra forma. E o fato de não o ter gerado por meio da união carnal não era motivo para deixar de chamá-lo pai de Cristo, pois também seria pai de alguém que tivesse sido adotado, mesmo que não tivesse sido gerado pela sua esposa”.
2. Segundo Jerônimo: “Mesmo que José não fosse o pai de Senhor e Salvador, a genealogia de Jesus se prolonga até José porque, em primeiro lugar, as Escrituras não costumam estabelecer uma genealogia seguindo a ordem das mulheres. E, em segundo lugar, porque Maria e José eram da mesma tribo, e por isso era obrigado pela lei a tomá-la por esposa”. E, como diz Agostinho: “era preciso prolongar a série das gerações até José para que não se fizesse afronta, neste matrimônio, ao sexo masculino que é superior; dessa forma em nada sofria a verdade, uma vez que José e Maria eram da linhagem de David’.
3. Como afirma a Glosa, na passagem referida: “Utilizou a palavra mulher em vez de fêmea, seguindo a maneira de falar dos hebreus. A palavra mulher, no uso dos hebreus, não designa aquelas que perderam sua virgindade, mas se refere ao sexo feminino em geral”.
4. Este argumento é válido para os que vêm à existência por vias naturais. Pois assim como a natureza está determinada a produzir um só efeito, assim também está determinada a produzi-lo de uma única maneira. Mas o poder sobrenatural de Deus, sendo infinito, não está determinado a produzir um único efeito, nem a produzi-lo de uma maneira determinada. Por isso, da mesma forma que o poder de Deus pôde formar o primeiro homem do pó da terra, assim também pôde formar o corpo de Cristo de uma virgem sem a intervenção do homem.
5. Segundo o Filósofo, no livro da Geração dos Animais, o sêmen do macho não desempenha o papel da matéria na concepção do animal, mas age só como princípio ativo. Só a fêmea fornece a matéria na concepção. Daí que, pelo fato de ter faltado o sêmen do macho na concepção do corpo de Cristo, não se segue que lhe faltasse a matéria devida.
Mas, mesmo na hipótese de que, nos animais, o sêmen do macho fosse a matéria do feto concebido, é evidente que não se trata de uma matéria que permaneça sob a mesma forma, mas de uma matéria transformada. E, embora o poder natural só possa transformar uma certa matéria em determinada forma, o poder de Deus, que é infinito, pode transformar qualquer matéria em qualquer forma. E assim como transformou o pó da terra no corpo de Adão, assim também pôde transformar no corpo de Cristo a matéria proporcionada pela mãe, ainda que não fosse matéria suficiente para uma concepção natural.
Fonte: ST III, 28, 1