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quarta-feira, 27 de março de 2013

A dor da paixão de Cristo foi maior que todas as outras dores?



Como se disse acima, ao tratarmos das deficiências assumidas por Cristo (q. 15, a. 5, 6), deve-se dizer que ele suportou uma autêntica dor; tanto sensível, causada por algo que fere o corpo, como interior, causada pela percepção do que é nocivo e que é chamada de tristeza. Ambas foram em Cristo as maiores dores na presente vida. E assim foi por quatro motivos.
Primeiro, pelas causas da dor. Pois a causa da dor sensível foi a lesão corporal, que se tornou pungente não só pela extensão do sofrimento, da qual se falou, mas também pelo gênero de sofrimento. É que a morte dos crucificados é muitíssimo cruel, pois são transfixados em locais de nervos muito sensíveis, ou seja, nas mãos e nos pés; o próprio peso do corpo suspenso aumenta continuamente a dor; e é uma dor que perdura, uma vez que o crucificado não morre logo, como os que são mortos pela espada. Já a causa da dor interior foi, em primeiro lugar, todos os pecados do gênero humano, pelos quais, sofrendo, Cristo dava satisfação, a ponto de, por assim dizer, assumi-los para si, como declara o Salmo 21: “As palavras das minhas faltas”. Em segundo lugar, especialmente a culpa dos judeus e dos demais que tramaram sua morte, mas de modo particular dos discípulos, que se escandalizaram com a paixão de Cristo. Em terceiro lugar, a perda da vida corporal, que por natureza é horrível à condição humana.
Segundo, a extensão do sofrimento pode ser considerada pela sensibilidade do paciente. Ora, ele tinha uma ótima compleição física, pois seu corpo fora formado de modo miraculoso pela ação do Espírito Santo; aliás, tudo o que foi realizado por um milagre era melhor que o resto, como diz Crisóstomo a respeito do vinho em que, na festa de núpcias, Cristo transformara a água. Assim, era agutíssimo nele o sentido do tato, com o qual se percebe a dor. Igualmente, a alma, com suas forças interiores, captava de modo intenso todas as causas de tristeza.
Terceiro, a grandeza da dor de Cristo ao sofrer pode ser estimada pela pureza dessa dor. Nos demais pacientes, com efeito, mitiga-se a tristeza interior e mesmo a dor externa com alguma consideração da razão, por alguma derivação ou redundância das forças superiores para as inferiores, Mas isso não aconteceu com Cristo em sua paixão, pois, como diz Damasceno, “ele permitiu que cada uma de suas potências exercesse a função que lhe era própria”.
Quarto, a extensão da dor de Cristo em sua paixão pode ser estimada pelo fato de seu sofrimento e dor terem sido assumidos voluntariamente, com o objetivo de liberar os homens do pecado. Assim, ele assumiu a intensidade da dor proporcional à grandeza do fruto que dela se seguiria.
De todas essas causas consideradas em seu conjunto, fica evidente que a dor de Cristo foi a maior.
Fonte: Suma Teológica III, q. 46, a. 6


Jesus Cristo morreu por obediência?


Parece que Cristo não morreu por obediência:
1. Com efeito, a obediência se refere a uma ordem. Ora, não se lê que houvesse ordens para Cristo sofrer. Logo, não sofreu por obediência.
2. Além disso, diz-se que é feito por obediência o que alguém faz por necessidade de uma ordem. Ora, Cristo sofreu não por necessidade, mas por vontade própria. Logo, não sofreu por obediência.
3. Ademais, o amor é uma virtude de maior excelência que a obediência. Ora, diz a Carta aos Efésios que Cristo sofreu por amor: “Vivei no amor, como Cristo nos amou e se entregou a si mesmo a Deus por nós” (5,2). Logo, deve-se atribuir a paixão de Cristo mais ao amor que à obediência.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz a Carta aos Filipenses: “Ele se fez obediente ao Pai até a morte” (2,8).
Foi muito conveniente ter Cristo sofrido por obediência. Primeiro, porque isso era conveniente para a justificação humana, como diz a Carta aos Romanos: “Assim como, pela desobediência de um só homem, a multidão se tornou pecadora, assim também, pela obediência de um só, a multidão se tornará justa” (5,19).
Segundo, isso foi conveniente para reconciliar o homem com Deus, como diz a Carta aos Romanos: “Fomos reconciliados com ele pela morte de seu Filho” (5,10), porquanto a própria morte de Cristo foi um sacrifício muito agradável a Deus, conforme a Carta aos Efésios: “E se entregou a si mesmo a Deus por nós em oblação e vítima, como perfume de agradável odor” (5,2). Ora, a obediência é preferível a todos os sacrifícios, como diz o livro dos Reis: “É melhor a obediência que os sacrifícios” (1Re 15,22). Portanto, foi conveniente que o sacrifício da paixão e morte de Cristo procedesse da obediência.
Terceiro, foi conveniente à vitória pela qual Cristo triunfou sobre a morte e o autor dela, pois o soldado não pode vencer se não obedecer ao capitão. Assim o homem Cristo garantiu a vitória pelo fato de ter sido obediente a Deus, conforme o que diz o livro dos Provérbios: “O homem obediente cantará vitórias” (21,28).
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Cristo recebeu do Pai a ordem de sofrer. É o que diz o Evangelho de João: “Eu tenho o poder de entregar a vida e tenho o poder de a retomar: este é o mandamento que recebi do meu Pai” (10,18), ou seja, o poder de entregar a vida e de a retomar. Conclui-se, como diz Crisóstomo, que não se deve entender que “primeiro, ele esperou receber ordens e que as tivesse de entender, mas demonstrou que suas atitudes eram voluntárias, destruindo as suspeitas de contradição” com o Pai. E porque a antiga lei se encerrou com a morte de Cristo, conforme o que ele próprio disse ao morrer: “Tudo está consumado” (Jo 19,30), pode-se entender que, ao sofrer, cumpriu todos os preceitos da antiga lei. Cumpriu os preceitos morais, que se fundam nos mandamentos do amor, porquanto sofreu pelo amor do Pai, segundo João: “A fim de que o mundo saiba que amo o meu Pai e ajo conforme o Pai me prescreveu. Levantai-vos, partamos daqui” (14,31), ou seja, para o lugar da paixão; e pelo amor do próximo, segundo o que diz a Carta aos Gálatas: “Me amou e se entregou por mim” (2,20). Cumpriu com sua paixão os preceitos cerimoniais da lei, que se destinam especialmente aos sacrifícios e oblações, porquanto todos os sacrifícios da antiga lei foram figuras do verdadeiro sacrifício que, ao morrer, Cristo ofereceu por nós. Por isso, diz a Carta aos Colossenses: “Ninguém vos condene por questões de comida e bebida, a respeito de uma festa, de uma lua nova. Tudo isso não passa de sombra do que devia vir, mas o corpo é de Cristo” (2, 16-17), pois Cristo está para tudo isso como o corpo para a sombra. Com sua paixão, Cristo cumpriu os preceitos jurídicos da lei, que se relacionam especialmente com a satisfação aos que sofreram injúria, pois, como diz o Salmo 68: “Então pagarei o que não roubei” (v.5), permitindo ele mesmo ser pregado no madeiro por causa do fruto que o homem, contra a ordem de Deus, tirara da árvore.
2. A obediência, embora seja necessária com relação ao que se manda, contudo implica vontade de cumprir o preceito. E foi essa a obediência de Cristo, pois, embora sua própria paixão e morte, em si consideradas, fossem repugnantes à vontade natural, Cristo queria cumprir a vontade de Deus a respeito, segundo o que diz o Salmo 39: “Meu Deus, quero fazer a tua vontade” (v. 9). Por isso, dizia: “Se esta taça não pode passar sem que eu a beba, faça-se a tua vontade” (Mt 26, 42).
3. Pela mesma razão Cristo sofreu por amor e por obediência, pois só por obediência cumpriu os preceitos do amor e, por amor, foi obediente às ordens do Pai.
Suma Teológica III, q.47, a.2