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quarta-feira, 21 de março de 2012

Comentário de Santo Tomas de Aquino ao Salmo II (continuação)

CAPÍTULO II
A seguir, declara o propósito dos conspiradores: "Quebremos seu jugo e sacudamos para longe de nós seus vínculos". Isto está dito em sentido próprio, pois o poder do rei se diz "jugo". Em 1 Re 12, 4, diz-se a Roboão que torne mais leve o jugo imposto por Salomão. Pois, assim como o boi pelo jugo é jungido a sua faina, assim também os homens pelo poder do rei.
Não se pode arrojar o jugo sem antes romper os vínculos. Ora, num reino, os vínculos são aquilo que impõe a autoridade do rei, tal como soldados, exércitos, armas etc. É necessário, portanto, antes de mais nada, desfazer estes vínculos e, então, remover o jugo.
Em sentido espiritual, em Cristo há o jugo da lei da caridade: "Meu jugo é suave etc." (Mt 11, 30) e os vínculos são as virtudes (esperança, fé, caridade): "pondo empenho em conservar a unidade de espírito no vínculo da paz" (Ef 4, 3). E diz o Eclesiástico: "seus vínculos são os laços da salvação" (6, 29).
Não pode pois a consciência do homem subtrair-se ao jugo da lei de Cristo, sem antes romper os vínculos. É o que fazem aqueles que dizem a Deus: "Aparta-te de nós. Não queremos conhecer os teus caminhos" (Jó 21, 14) [7] . Ou daquele de quem se diz em Jeremias: "Desde o início arrojaste o jugo e quebraste os vínculos e disseste: 'Não servirei'" (Jer 2, 20).
CAPÍTULO III
Ao dizer: "Aquele que habita nos Céus, se ri", o salmo trata da agressão dos conspiradores ao reino de Davi: primeiramente, de como agridem ao Senhor e, em segundo lugar, a seu Cristo ("Eu, porém, fui constituído...").
Quanto ao primeiro caso, há quatro incidências: zombaria, desprezo, fala irada e confusão (irrisionem, subsannationem, iratam locutionem, et conturbationem).
Pois, assim como um menino, desprovido de forças, que luta contra um gigante, é objeto da zombaria do gigante, assim também aquele que habita nos céus ri-se dos impotentes que querem conspirar contra ele. Diz o livro de Jó: "Contempla os céus e vê, observa como as nuvens são mais altas do que tu. Se pecares, que mal lhe fazes?" (Jó 35, 5 e ss.). E se o impotente insiste, o poderoso o castiga e o despreza. O desprezo da irrisão faz-se com a boca[8] , enquanto o desprezo da subsannatio dá-se pela contração do nariz. O livro dos Provérbios (1, 26) fala nestes termos: "Vou rir de vossa desgraça e zombar (subsannabo) quando fordes atingidos pelo que temeis". E o salmo: "Dirigindo-se a eles em sua cólera", isto é, proferirá a sentença de condenação deles, pois Deus não incorre em ira (por vezes, atribui-se ao criador por antropospatos o que é da criatura, como uma paixão humana). Também outro salmo (Sl 6, 2) fala da ira nesse mesmo sentido: "Senhor, não me castigues com tua ira...".
E, por fim, passa à execução da sentença. Assim o salmo diz que, em seu furor, aterrá-los-á, no coração e na alma, com a condenação eterna, castigá-los-á com seu poder. Também diz o livro de Jó: "Sabe o que lhe está preparado, não escapará do dia das trevas, será aterrorizado pela tribulação e será invadido pela angústia" (Jó 15, 23).

Estas quatro coisas ocorrerão no juízo: escarnecerá (irridebit) [9] ao dizer "Tive fome..."; zombará (subsannabit) deles, situando-os a sua esquerda (Mt 25, 33); falará enfurecido (loquetur in ira), sentenciando "Ide, malditos, ao fogo eterno..." e aterrorizá-los-á (conturbabit), executando a sentença "E serão lançados no suplício eterno...".

CAPÍTULO IV
Mostra-se a seguir como serão reprimidos pelo seu Cristo: "Eu, porém...". Pois, o povo, nações e princípes insurgiram-se contra Cristo/Davi. Primeiramente mostra como o Cristo age em relação ao povo; em segundo lugar, em relação às nações ("Disse-me o Senhor...") e, em terceiro lugar, em relação aos reis ("Agora, ó reis, compreendei..."). E diz: "Eu, porém, fui constituído rei em Sião, seu monte santo...". Deve-se saber que há um rei constituído por Deus em Jerusalém e sua pregação restabelece a ordem sobre o povo. Como que dizendo: "Estes fazem rebelião, mas não podem alcançar seu intento, porque eu fui constituído e firmemente estabelecido rei sobre Sião, isto é, sobre o povo dos judeus, cuja cidadela é Sião".
Assim, seu poder advém de Deus, como diz o salmo: "O Senhor é meu auxílio e não temo o que pode fazer contra mim o homem" (Sl 117, 6). E o livro de Jó: "Põe-me, Senhor, a teu lado e mão alguma se levanta contra mim" (Jó 17,3).
"Fui constituído rei em Sião, seu monte santo": não para mim mesmo, mas para reger o povo segundo a lei de Deus e, por isso, prossegue: "Vou publicar o preceito do Senhor". Prefigurando a Cristo, fala-se desse rei, segundo a profecia: "Virão dias em que suscitarei a Davi um descendente justo, reinará e será sábio, praticará o direito e a justiça sobre a terra" (Jer 23, 5).
Sião, a igreja dos judeus, é chamado de monte santo, pois recebe antes os raios do Sol. Diz o Senhor: "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 15, 24) [10] . E lê-se nas Escrituras: "Acaso ignoro que hoje me tornei rei de Israel?" (II Sam 19, 23).
"Vou publicar o preceito do Senhor", o preceito do Evangelho ou aquele preceito especial de Jo 13, 34: "Um mandamento novo eu vos dou: que vos ameis uns aos outros" e "Este é o meu preceito: que vos ameis uns aos outros" (Jo 15, 12). Este preceito, ele o pregou pessoalmente, por sua própria pessoa: "Jesus percorria toda a Galiléia ensinando nas sinagogas deles e pregando o evangelho do reino" (Mt 4, 23).

sexta-feira, 16 de março de 2012

“Os comentários de Tomás à Escritura e o In Psalmos [1]

Dentro da imensa obra de Tomás de Aquino, encontram-se diversos comentários à Sagrada Escritura. Esses comentários se dividem em reportationes e ordinationes. Ao contrário da ordinatio - que é uma obra acabada, escrita ou ditada pelo autor -, a reportatio não pretende ser uma redação oficial: são, antes, anotações de aula, feitas por um estudante ou por um secretário.
O In Psalmos é a reportatio correspondente a aulas de Tomás sobre os Salmos 1 a 56, ministradas em 1272-1273, como regente de Teologia em Nápoles. Trata-se, portanto, de uma das últimas obras do Aquinate (como se sabe, ele parou de escrever em dezembro de 1273). Sendo uma reportatio, tem um caráter um tanto truncado: são notas tomadas diretamente de uma exposição do mestre em sala de aula.
No prólogo, Tomás observa que todos conhecem três traduções latinas dos salmos: já nos tempos apostólicos havia uma antiga tradução, corrompida pelos copistas e, por isso, o papa Dâmaso encomendou a São Jerônimo que corrigisse o saltério e desse trabalho resultou o "saltério romano". Mas, prossegue, como essa tradução divergisse do texto grego, Jerônimo empreendeu uma nova tradução latina - coincidindo com o grego palavra por palavra - e Dâmaso ordenou que esta versão fosse cantada na França, tornando-se conhecida como "saltério galicano". Com o tempo, esta versão foi adotada por toda a cristandade latina até converter-se no texto modelo, que é a Vulgata.
Comentário ao Salmo II [2]
Tomás de Aquino
CAPÍTULO I
O salmo II é um salmo de Davi: foi por ele composto e trata de seu reinado - imagem do reinado de Cristo. Pois Cristo é adequadamente prefigurado por Davi: dele se diz ser mão forte; de Cristo, força de Deus (I Cor 1, 24). Davi tinha um aspecto agradável; Cristo, o esplendor da glória (Hbr 1, 3), "a quem os anjos desejam contemplar" (I Pe 1, 12).
"Por que bramaram as nações e os povos tramam vãs conspirações?". O salmo II divide-se em duas partes. Na primeira, descrevem-se as maquinações dos que conspiram contra o reino de Davi e de Cristo; na segunda, o desbaratamento dos insurretos: "Aquele, porém, que habita nos céus, se ri".
Na primeira parte, há três pontos: os planos de rebelião, contra quem se dirigem esses planos (contra o Senhor) e o objetivo da revolta: a ruptura dos vínculos do Senhor.
Quanto ao primeiro, sabe-se, pela história, que uma rebelião começa pelo surgimento de um murmúrio entre o povo e, depois, se recorre ao auxílio de um poderoso para perfazê-la. Daí que se fala primeiro do murmúrio do povo e, depois, do auxílio dos poderosos: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem".
No meio do povo, porém, há alguns menos dotados de razão, impetuosos, enquanto os mais ajuizados são mais cautelosos. Aqueles, ao se rebelarem, não se movem pela inteligência, mas mais pelo ímpeto e por isto se diz "bramaram", o que é próprio dos animais: "Como o bramido do leão é a ira do rei" (Pro 19, 12).
Há outros, porém, que se movem por deliberação e deles se diz: "tramaram vãs conspirações", pois "vãs são as cogitações dos homens" (Sl 93).
"Povo" é multidão de homens, em sociedade, sob o consenso da lei. Assim, os judeus são chamados "povo" por estarem com a lei e sob a lei de Deus. Já "nações" designa os gentios, que não estão sob a lei de Deus. No reino de Davi, havia nações subjugadas e judeus sob a lei. Uns e outros maquinavam contra ele, daí que diz o salmo: "Por que bramaram as nações e os povos tramaram vãs conspirações?". Não se trata aqui de uma autêntica pergunta, mas de uma repreensão (como é o caso de outras passagens da Bíblia, como: "Que proveito tiramos da soberba? A arrogância das riquezas, de que nos serve?" - Sab 5,8).
O povo miúdo, por si só, nada pode fazer, se não contar com os poderosos, daí que o salmo diga que estes oferecem auxílio, em primeiro lugar, por seu poder: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem contra o Senhor e contra seu Cristo", como que dizendo: uns bramaram e outros ergueram-se, isto é, empreenderam esse mal. Alguns cooperaram com seu saber, aconselhando, daí que se diga: "unidos, os príncipes se insurgem", isto é, uniram-se em seus juízos ou - como diz outra tradução - "confabulavam".
É uma situação semelhante à apresentada em Jeremias: "'Recorrerei aos grandes e falarei com eles, pois eles conhecem o caminho do Senhor e os juízos de seu Deus'. Mas, todos se uniram, unânimes, em sacudir o jugo do Senhor etc." (Jer 5,5).
Mostra-se que a rebelião é contra o Senhor e seu rei, ao dizer: "contra o Senhor e contra seu Cristo" que "sofrem a rebelião", pois cristo, o ungido, significa rei, como se vê no salmo (104, 15): "Não toqueis em meus cristos (ungidos)". Quem, pois, se rebela contra o rei instituído por Deus, rebela-se também contra Deus: "Quem resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus" (Rom 13, 2). Daí que o salmo diga: "contra o Senhor e contra seu Cristo". E (I Sam 8, 7) [6] : "Desprezaram não a ti, mas a mim".
Simbolicamente, fala-se de Cristo em Davi: "Senhor, tu disseste pela boca de nosso pai Davi, teu filho 'Por que bramaram as nações etc.' e, de fato, uniram-se todos nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, a quem ungiste etc." (At 4, 25 e ss.). Este discurso deve ser entendido assim: as nações, ou seja, os soldados, uniram-se ao povo, isto é, os judeus, contra Cristo: "tramaram vãs conspirações", pensando em matá-lo totalmente, de modo que não ressuscitasse. Os reis da terra (isto é Herodes Ascalonita, que matou as crianças e, depois, Herodes Antipas, seu filho, que concordou com Pilatos), os príncipes - isto é, Pilatos (o plural pelo singular é por sinédoque) - e os príncipes dos sacerdotes que "se uniram" numa única má vontade "contra o Senhor e contra seu cristo".”
(* Techo de “Tomas de Aquino Lecionando o Comentario ao Salmo II, por Jean Lauand. Fac. de Educ. da USP )
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[1] . Para os dados deste estudo, cfr. Weisheipl, James A. Tomás de Aquino - Vida, obra y doctrinas, Pamplona, Eunsa, 1994. Valemo-nos do original latino do In Psalmos apresentado por Roberto Busa Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milano, Editoria Elettronica Editel, 1992, que, por sua vez, reproduz a ed. Parmensis t. XIV, 1863.
[2] . In Psalmos II, 2, 1 a 10.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Oração, esmola e jejum praticas da quaresma.

No início da Quaresma, que constitui um caminho de treino espiritual mais intenso, a Liturgia propõe-nos três práticas penitenciais de extrema importância à tradição bíblica e cristã – a oração, a esmola, o jejum – a fim de nos predispormos para celebrar melhor a Páscoa e deste modo fazer experiência do poder de Deus que, como ouviremos na Vigília pascal, «derrota o mal, lava as culpas, restitui a inocência aos pecadores, a alegria aos aflitos. Dissipa o ódio, domina a insensibilidade dos poderosos, promove a concórdia e a paz» (Hino pascal).

Gostaria de refletir este ano em particular sobre o valor e o sentido do jejum. De facto a Quaresma traz à mente os quarenta dias de jejum vividos pelo Senhor no deserto antes de empreender a sua missão pública. Lemos no Evangelho:

«O Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser tentado pelo demónio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome» . Como Moisés antes de receber as Tábuas da Lei, como Elias antes de encontrar o Senhor no monte Horeb, assim Jesus rezando e jejuando se preparou para a sua missão, cujo início foi um duro confronto com o tentador.

Podemos perguntar que valor e que sentido tem para nós, cristãos, privar-nos de algo que seria em si bom e útil para o nosso sustento. As Sagradas Escrituras e toda a tradição cristã ensinam que o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e tudo o que a ele induz. Por isto, na história da salvação é frequente o convite a jejuar. Já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura o Senhor recomenda que o homem se abstenha de comer o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás». 

Comentando a ordem divina, São Basílio observa que «o jejum foi ordenado no Paraíso», e «o primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão». Portanto, ele conclui: «O "não comas" e, portanto, a lei do jejum e da abstinência»

Dado que todos estamos entorpecidos pelo pecado e pelas suas consequências, o jejum é-nos oferecido como um meio para restabelecer a amizade com o Senhor. Assim fez Esdras antes da viagem de regresso do exílio à Terra Prometida, convidando o povo reunido a jejuar «para nos humilhar – diz – diante do nosso Deus». O Omnipotente ouviu a sua prece e garantiu os seus favores e a sua proteção.

O mesmo fizeram os habitantes de Nínive que, sensíveis ao apelo de Jonas ao arrependimento, proclamaram, como testemunho da sua sinceridade, um jejum dizendo: «Quem sabe se Deus não Se arrependerá, e acalmará o ardor da Sua ira, de modo que não pereçamos?».

Também então Deus viu as suas obras e os poupou. No Novo Testamento, Jesus ressalta a razão profunda do jejum, condenando a atitude dos fariseus, os quais observaram escrupulosamente as prescrições impostas pela lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, repete também noutras partes o Divino Mestre, é antes cumprir a vontade do Pai celeste, o qual «vê no oculto, recompensar-te-á». Ele próprio dá o exemplo respondendo a satanás, no final dos 40 dias transcorridos no deserto, que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus».

O verdadeiro jejum finaliza-se portanto a comer o «verdadeiro alimento», que é fazer a vontade do Pai. Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do Senhor «de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal», com o jejum o crente deseja submeter-se humildemente a Deus, confiando na sua bondade e misericórdia.

O jejum é uma prática frequente recomendada pelos santos de todas as épocas. Escreve São Pedro Crisólogo: «O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum, portanto quem reza jejue. Quem jejua tenha misericórdia. Quem, ao pedir, deseja ser atendido, atenda quem a ele se dirige. Quem quer encontrar aberto em seu benefício o coração de Deus não feche o seu a quem o suplica».

sábado, 3 de março de 2012

Tempo Litúrgico da Quaresma

Compreende-se por Quaresma os quarenta dias de oração, jejum, penitência, esmola que precedem à festa da Páscoa. Essa preparação existe desde o tempo dos Apóstolos, que fixaram a sua duração a quarenta dias, em memória dos quarenta dias que Jesus passou no deserto. Durante esse tempo a Igreja veste seus ministros com paramentos de cor roxa e suprime os cânticos de alegria: O “Glória”, o “Aleluia” e o “Te Deum”.

Na Quaresma que começa na quarta-feira de cinzas e termina na quarta-feira da Semana Santa, os católicos realizam a preparação para a Páscoa. O período então é reservado para a reflexão, à uma conversão mais profunda. Ou seja, nesse tempo, renova-se com ênfase o apelo a uma maior comunhão com Deus e com os irmãos, a uma metanóia – mudança de direção, a um crescimento espiritual.

Nesse tempo de graça (kairós), a Igreja propõe, por meio do Evangelho, proclamado na quarta-feira de cinzas, os exercícios quaresmais já citados: oração, penitência, caridade e confissão como meios a propiciar a conversão.

Na quarta-feira de cinzas, é imposta, na fronte dos fiéis, a cinza com as palavras do Evangelho que nos lembram essa chamada: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15) e ainda “Tu és pó e ao pó retornarás” (Gn 3,19). Evidente que não se trata de um rito mágico que, supostamente tiraria pecado, como, aliás, ouvi num programa religioso de televisão, de uma nova seita, que afirmava estranhamente que na Igreja Católica, acreditava-se que as cinzas tiravam pecados, nada mais deturpado e não verdadeiro, parece até piada mal intecionada. Mas, enfim, todos os ritos exteriores visam a uma atitude interior que na verdade, e muito claramente, é o objetivo da ação litúrgica.

O roxo usado nas alfaias, nos paramentos litúrgicos simboliza essa austeridade, penitência, contrição a favorecer a conversão de vida ao Evangelho de Cristo Jesus. Nesse tempo recorda-se, mais intensamente a Paixão de Cristo, a Via-Sacra, o caminho de Cristo ao calvário, como grande prova de amor por nós. “Deus amou tanto o mundo, que enviou seu filho unigênito, para que não perece todo que nele crê, mas tenha a vida eterna” ( Jo 3,16) e como via de salvação.

E os quarenta dias, além de recordar o tempo que o Senhor Jesus passou no deserto, têm outro significado? Sim; Na Bíblia, o número quatro simboliza o universo material (terra, água, ar, fogo). Os zeros que o seguem podem indicar o tempo de nossa vida na terra, suas provações e dificuldades. Evoca os quarenta dias do dilúvio, os quarenta anos de peregrinação do povo judeu no deserto, entre outras. Esses períodos vêm sempre antes de fatos importantes e se relacionam com a necessidade de ir criando um clima adequado e preparando o coração para algo especial que vai acontecer. No caso da quaresma, a Páscoa – que é a principal festa dos cristãos.

O Jejum permanece válido? Claro que sim, ao jejuar no deserto, o Senhor Jesus consagrou essa prática, que para nós cristãos é um sacrifício pequeno a nos treinar e fortalecer espiritualmente ante as renúncias que se fazem necessárias no seguimento de Cristo Jesus, “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24), ademais com o jejum podemos ser solidários com os que sofrem, partilhando e servindo a quem necessita. Tudo isso então, seja compreendido como uma estratégia a favorecer nosso encontro pessoal e comunitário com aquele que reconhecemos ser o nosso Senhor e Salvador e a servi-lo também servindo aos irmãos.