Dentro da imensa obra de Tomás de Aquino, encontram-se diversos comentários à Sagrada Escritura. Esses comentários se dividem em reportationes e ordinationes. Ao contrário da ordinatio - que é uma obra acabada, escrita ou ditada pelo autor -, a reportatio não pretende ser uma redação oficial: são, antes, anotações de aula, feitas por um estudante ou por um secretário.
O In Psalmos é a reportatio correspondente a aulas de Tomás sobre os Salmos 1 a 56, ministradas em 1272-1273, como regente de Teologia em Nápoles. Trata-se, portanto, de uma das últimas obras do Aquinate (como se sabe, ele parou de escrever em dezembro de 1273). Sendo uma reportatio, tem um caráter um tanto truncado: são notas tomadas diretamente de uma exposição do mestre em sala de aula.
No prólogo, Tomás observa que todos conhecem três traduções latinas dos salmos: já nos tempos apostólicos havia uma antiga tradução, corrompida pelos copistas e, por isso, o papa Dâmaso encomendou a São Jerônimo que corrigisse o saltério e desse trabalho resultou o "saltério romano". Mas, prossegue, como essa tradução divergisse do texto grego, Jerônimo empreendeu uma nova tradução latina - coincidindo com o grego palavra por palavra - e Dâmaso ordenou que esta versão fosse cantada na França, tornando-se conhecida como "saltério galicano". Com o tempo, esta versão foi adotada por toda a cristandade latina até converter-se no texto modelo, que é a Vulgata.
Comentário ao Salmo II [2]
Tomás de Aquino
CAPÍTULO I
O salmo II é um salmo de Davi: foi por ele composto e trata de seu reinado - imagem do reinado de Cristo. Pois Cristo é adequadamente prefigurado por Davi: dele se diz ser mão forte; de Cristo, força de Deus (I Cor 1, 24). Davi tinha um aspecto agradável; Cristo, o esplendor da glória (Hbr 1, 3), "a quem os anjos desejam contemplar" (I Pe 1, 12).
"Por que bramaram as nações e os povos tramam vãs conspirações?". O salmo II divide-se em duas partes. Na primeira, descrevem-se as maquinações dos que conspiram contra o reino de Davi e de Cristo; na segunda, o desbaratamento dos insurretos: "Aquele, porém, que habita nos céus, se ri".
Na primeira parte, há três pontos: os planos de rebelião, contra quem se dirigem esses planos (contra o Senhor) e o objetivo da revolta: a ruptura dos vínculos do Senhor.
Quanto ao primeiro, sabe-se, pela história, que uma rebelião começa pelo surgimento de um murmúrio entre o povo e, depois, se recorre ao auxílio de um poderoso para perfazê-la. Daí que se fala primeiro do murmúrio do povo e, depois, do auxílio dos poderosos: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem".
No meio do povo, porém, há alguns menos dotados de razão, impetuosos, enquanto os mais ajuizados são mais cautelosos. Aqueles, ao se rebelarem, não se movem pela inteligência, mas mais pelo ímpeto e por isto se diz "bramaram", o que é próprio dos animais: "Como o bramido do leão é a ira do rei" (Pro 19, 12).
Há outros, porém, que se movem por deliberação e deles se diz: "tramaram vãs conspirações", pois "vãs são as cogitações dos homens" (Sl 93).
"Povo" é multidão de homens, em sociedade, sob o consenso da lei. Assim, os judeus são chamados "povo" por estarem com a lei e sob a lei de Deus. Já "nações" designa os gentios, que não estão sob a lei de Deus. No reino de Davi, havia nações subjugadas e judeus sob a lei. Uns e outros maquinavam contra ele, daí que diz o salmo: "Por que bramaram as nações e os povos tramaram vãs conspirações?". Não se trata aqui de uma autêntica pergunta, mas de uma repreensão (como é o caso de outras passagens da Bíblia, como: "Que proveito tiramos da soberba? A arrogância das riquezas, de que nos serve?" - Sab 5,8).
O povo miúdo, por si só, nada pode fazer, se não contar com os poderosos, daí que o salmo diga que estes oferecem auxílio, em primeiro lugar, por seu poder: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem contra o Senhor e contra seu Cristo", como que dizendo: uns bramaram e outros ergueram-se, isto é, empreenderam esse mal. Alguns cooperaram com seu saber, aconselhando, daí que se diga: "unidos, os príncipes se insurgem", isto é, uniram-se em seus juízos ou - como diz outra tradução - "confabulavam".
É uma situação semelhante à apresentada em Jeremias: "'Recorrerei aos grandes e falarei com eles, pois eles conhecem o caminho do Senhor e os juízos de seu Deus'. Mas, todos se uniram, unânimes, em sacudir o jugo do Senhor etc." (Jer 5,5).
Mostra-se que a rebelião é contra o Senhor e seu rei, ao dizer: "contra o Senhor e contra seu Cristo" que "sofrem a rebelião", pois cristo, o ungido, significa rei, como se vê no salmo (104, 15): "Não toqueis em meus cristos (ungidos)". Quem, pois, se rebela contra o rei instituído por Deus, rebela-se também contra Deus: "Quem resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus" (Rom 13, 2). Daí que o salmo diga: "contra o Senhor e contra seu Cristo". E (I Sam 8, 7) [6] : "Desprezaram não a ti, mas a mim".
Simbolicamente, fala-se de Cristo em Davi: "Senhor, tu disseste pela boca de nosso pai Davi, teu filho 'Por que bramaram as nações etc.' e, de fato, uniram-se todos nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, a quem ungiste etc." (At 4, 25 e ss.). Este discurso deve ser entendido assim: as nações, ou seja, os soldados, uniram-se ao povo, isto é, os judeus, contra Cristo: "tramaram vãs conspirações", pensando em matá-lo totalmente, de modo que não ressuscitasse. Os reis da terra (isto é Herodes Ascalonita, que matou as crianças e, depois, Herodes Antipas, seu filho, que concordou com Pilatos), os príncipes - isto é, Pilatos (o plural pelo singular é por sinédoque) - e os príncipes dos sacerdotes que "se uniram" numa única má vontade "contra o Senhor e contra seu cristo".”
(* Techo de “Tomas de Aquino Lecionando o Comentario ao Salmo II, por Jean Lauand. Fac. de Educ. da USP )
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[1] . Para os dados deste estudo, cfr. Weisheipl, James A. Tomás de Aquino - Vida, obra y doctrinas, Pamplona, Eunsa, 1994. Valemo-nos do original latino do In Psalmos apresentado por Roberto Busa Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milano, Editoria Elettronica Editel, 1992, que, por sua vez, reproduz a ed. Parmensis t. XIV, 1863.
[2] . In Psalmos II, 2, 1 a 10.
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